20.08.2005 - O Globo - Prosa & Verso - Nelson Vasconcelos - O bonde da filosofia.

Para alegria do mercado editorial, cabe todo mundo na onda de livros filosóficos.

O que é filosofia? Algumas sugestões: 1) um saber; 2) um jeitão de questionar o ser e o não-ser; 3) uma forma refinada de auto-ajuda. Bem... pode ser isso tudo ou nada disso, mas ninguém duvida: é também um baita filão editorial. As livrarias estão cheias de lançamentos nessa área e não estão reclamando. Editores e leitores tampouco. Não por acaso, a filosofia já merece até nove minutos semanais no “Fantástico”, domingo à noite, na Rede Globo. Horário nobre. Resultado prático: Platão, Schopenhauer, Nietzsche e outros de seus pares estão a ponto de virar enredo carnavalesco. E, opa, não estará ocorrendo isso mesmo: uma certa carnavalização da filosofia?

O problema, dizem críticos desse “gênero editorial”, é que a filosofia está cada vez mais parecida com uma espécie de auto-ajuda. Ou seja: para melhorar a sua vida, agora você deve recorrer a Sócrates — ou a Kant, tanto faz. Qualquer que seja a escolha, algum filósofo de plantão vai ajudá-lo a compreender o mundo em que você está mergulhado e a suportá-lo estoicamente.

Existem livros sérios que acabam fazendo isso — mas o problema está nas exceções. É nesse grupo que estariam títulos como “Espere o inesperado” ou “Filósofos Futebol Clube”, dois entre tantos amontoados de besteiras travestidos de alto conhecimento. São bons exemplos de que o leitor tem que exercer o direito (filosófico) de ser cético. Pois é preciso duvidar de tudo, como sugere Kierkegaard.

Falta de profundidade é o ponto em comum.

Veja-se o caso de “Espere o inesperado (ou você não o encontrará)” (Roger Von Oech, Ed. Bertrand Brasil). Essa “ferramenta de criatividade baseada na ancestral sabedoria de Heráclito” pretende ensinar, em 200 páginas, a arte de ter insights. E sai aconselhando: “conecte o desconexo”, “preste atenção às pequenas coisas”, “jogue com os problemas”, “aprecie o sol” etc. Sem mais comentários.

Na linha da divulgação filosófica, tente “Filósofos Futebol Clube” (Mark Perryman, Disal Editora). Ele reuniu um time de 11 craques do pensamento e traçou o perfil de cada um deles. Nem todos são filósofos. Bob Marley, por exemplo, está na ponta (!) e “gostava de fazer a bola rolar na erva”. Que incrível. E o goleiro Camus, céus, “determinado a impedir a própria queda, (...) foi considerado uma peste e correu o risco de tornar-se estrangeiro”... Alguém aí já disse que o trocadilho é a morte do humor? Pois é...

Não faltam exemplos de sem-gracices absolutamente inúteis para a Humanidade. Parece que, no bonde da filosofia, embarca quem quer. Com ou sem conteúdo.

— Eu diria que há muitos livros desse tipo que são bastante rasos do ponto de vista do embasamento filosófico — diz Cláudio Oliveira, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF), sem citar título algum. — É uma literatura de assimilação muito fácil e que não leva o leitor a uma busca um pouco mais profunda.

A gente poderia dizer que essa falta de profundidade é quase uma exigência dos tempos de hoje, tão cheios de pressas e prozacs. Os (vá lá) pensadores contemporâneos Alain Finkielkraut e Dany-Robert Dufour não discordariam. Arriscaria dizer que Constantin Noica também não. Pois a regra é clara: o que vale é o descartável; leu, joga fora. Não precisa assimilar nada. Até porque, lembremos socraticamente, a gente só sabe que nada sabe...

— Tenho um amigo que diz que gosta de best-seller porque, assim que lê a última página, ele não lembra de mais nenhum detalhe da história — conta Oliveira, que organiza na UFF seminários para discutir o relacionamento entre filosofia e psicanálise.

A opinião de que há livros demais sobre o assunto é compartilhada, por exemplo, pela psicóloga e doutora em filosofia Viviane Mosé, que criou e apresenta no “Fantástico” o quadro “Ser ou não ser?”, correlacionando conceitos filosóficos ao dia-a-dia dos mortais comuns:

— Livros assim não têm valor algum. São textos sem fundamento, que viram uma brincadeira — diz ela, que garante não ter tido tempo para ler obras de aconselhamento filosófico ou coisa que o valha. — Eu gosto muito do tempo e detesto jogá-lo fora.

Um lembrete: mercado é a palavra-chave.

Tudo bem: ler é melhor do que não ler. Mas será que a intenção de todos esses livros de divulgação filosófica é realmente divulgar a velha e boa filosofia?

— De tempos em tempos surge uma demanda maior de determinado campo de saber. E aí vão surgir os bons e os picaretas. É a lei do mercado — sugere o professor de teoria psicanalítica e escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza. — E não acredito que essa característica seja uma peculiaridade da psicanálise ou da filosofia. Isso pode acontecer também com a física, por exemplo.

Seria muita inocência pensar que o que importa é o conteúdo do que está nas prateleiras. Estamos falando de mercado editorial e “mercado” é a palavra-chave também no supermercado das idéias. O difícil é ficar alerta.

— É muito fácil surgirem pessoas que se aproveitam de um novo campo de trabalho e se propõem a falar (sobre qualquer coisa). Por isso, quem vai escutá-los é que tem que ter capacidade de discernir entre quem é competente e quem está enganando — diz Garcia-Roza.

Alheio a essa discussão está o mercado. A Livraria da Travessa, uma das principais do Rio, capricha para dar maior visibilidade aos títulos de filosofia — tanto para iniciantes quanto para os já iniciados na matéria.

— A venda de livros dessa área cresceu 22% entre 2004 e 2005, bastante impulsionada pelos romances baseados em filósofos — diz Marcelo da Silva e Silva, gerente e responsável pelas compras da filial da Travessa no Centro.

Passando ao largo das livrarias bacanas da cidade, e vivendo muito bem, estão editoras como a Escala, que vende traduções de clássicos da filosofia em bancas de revistas. Por R$ 4,90, pode-se ler em papel jornal obras de pensadores como Aristóteles, Descartes, Maquiavel, Nietzsche (tá em todas), Platão, Rousseau e Voltaire, entre outros. As edições não são chiques. Mas, pelo preço...

— Vende bastante — resume um jornaleiro da Rua Senador Dantas, no Centro do Rio.

É a velha história: ninguém resiste a uma pechincha.

Demanda surpreende até editoras.

Mistura de ficção e filosofia cria novo público leitor, que volta às livrarias em busca de mais obras sobre o assunto.

Intrigas à parte, certo é que o leitor brasileiro de filosofia está surpreendendo até mesmo as editoras. Da recém-lançada série de livros de bolso da Companhia das Letras, por exemplo, o título que tem tido mais saída é “Além do bem e do mal”, de Nietzsche. Não sendo leitura exatamente fácil ou popularesca, ainda assim está superando o arrasa-quarteirão “Estação Carandiru”, do médico e multimídia Drauzio Varella, também presente na mesma série.

— Essa forte venda surpreendeu a editora sim — diz Marcelo Levy, diretor comercial da Companhia das Letras. — Mas devemos lembrar que o maior best seller da editora, “O mundo de Sofia”, também está ligado à filosofia. Sem falar no preço, que é bem atrativo.

Então dá para esperar outras obras de Nietzsche a preço popular (R$ 18,50)?

— Sem dúvida — garante Levy. — Os leitores podem aguardar mais filosofia na linha de pockets .

Editoras portuguesas também saem ganhando.

Como diz o Marcelo da Silva e Silva, da Livraria da Travessa, os livros de ficção usando a filosofia como pano de fundo são importantes porque acabam criando um novo público. O romance “A cura de Schopenhauer”, de Irvin D. Yalom, por exemplo, aumentou a procura pelas obras do filósofo, principalmente “O mundo como vontade e representação”.

— Nós já tínhamos um bom público nessa linha de filosofia, mas os romances estão atraindo mais gente para o assunto. Os livros do Nietzsche, por exemplo, não param por aqui — diz o gerente da Travessa.

Silva também chama a atenção para o fato de editoras brasileiras não investirem tanto em traduções de clássicos ou mesmo de filósofos contemporâneos. Quem tem aproveitado essa lacuna são as editoras portuguesas de filosofia, que já merecem um estande especial na Travessa. São livros caros: na faixa de R$ 50, no mínimo. Mas o público realmente interessado no pensamento contemporâneo acaba pagando o preço, de bom grado.

Martins Fontes: sempre de olho no mercado.

A Martins Fontes também redirecionou suas armas e está lançando bons títulos de filosofia a preços muito em conta. Há 45 anos no mercado, continua com seu tradicional catálogo-cabeça na área, com títulos para iniciados e para iniciantes. É uma editora que serve de referência básica sobre o assunto.

Como a maré exige, a Martins Fontes conseguiu levar para a faixa de R$ 25, ou menos, obras de Schopenhauer, Diderot, Blaise Pascal, Kierkegaard e outros bem-pensantes. Além disso, deu em Roland Barthes um banho de loja que não caiu nada mal. Hein? Barthes não é filosofia? Ora, mas cabe no bonde dos pensadores.

Sem divulgar números, a editora parece bem confortável com a força desse nicho.

— Há um real crescimento desse mercado, não só no Brasil como no mundo todo. E acho que a idéia de você buscar na filosofia reflexões que ajudem as pessoas no seu dia-a-dia é uma coisa muito simpática. Existe claramente essa procura: “Vamos ver o que dizem Sócrates e o pessoal que há milênios pensa sobre o homem, sobre a vida, a ética” — diz Alexandre Martins Fontes, diretor da casa. — Não temos nada contra o livro de auto-ajuda. Desde que ele esteja ajudando as pessoas, é uma coisa maravilhosa. Mas não publicamos nessa linha porque nem saberíamos fazer um bom trabalho.

Talvez não seja tanto assim. Mesmo sem enveredar abertamente pela auto-ajuda de caráter filosófico, a editora acabou de lançar “O livro da sabedoria”, por exemplo, que leva bem esse jeitão de “reflexões para tornar seu dia feliz”. Organizado por Yveline Brière, trata-se de uma antologia de textos curtos “selecionados para atingir o coração do homem no que ele tem de mais sutil, mais íntimo e precioso”, como garante a orelha. Deixa no ar um cheirinho de manual de auto-ajuda. No pequeno livro estão lado a lado, por exemplo, reflexões de Lao-tsé, Madre Teresa e Maquiavel (pg. 57). Donde se vê que, se é para o bem-estar geral da nação, tem espaço para todo mundo.

Popularizar ou não, eis a questão.

Cursos em universidades e programa de TV refletem o grande interesse pelo tema.

A divulgação de filosofia chega ao auge todos os domingos à noite, no “Fantástico”, da Rede Globo. Durante o quadro “Ser ou não ser?” — com consideráveis nove minutos de duração — a poeta, psicóloga e doutora em filosofia Viviane Mosé apresenta idéias e conceitos filosóficos correlacionando-os ao dia-a-dia do brasileiro. Assim, pretende mostrar que essa reflexão milenar não é uma abstração ou refinado hábito restrito ao bancos acadêmicos. Resultado: surpreendente aceitação do grande público.

O quadro no “Fantástico” é apenas mais uma manifestação do crescente interesse geral pela filosofia. Nos últimos anos, as universidades do país estão investindo em cursos na área, com grande procura. Já o Mosteiro de São Bento, no Rio, criou este ano um curso de pós-latu sensu de filosofia geral, da História Antiga à modernidade. Sucesso, assim como os grupos de estudos sobre o assunto, liderados por professores universitários.

O público também não esconde a curiosidade a respeito do pensamento medieval. Quem percebeu isso bem foi o carioca Sidney Silveira, que acaba de criar a editora Sétimo Selo. No catálogo, pensadores da Idade Média, com atenção especial a Santo Agostinho, de quem já publicou “A natureza do bem”, em edição bilíngüe latim-português, com tradução de Carlos Ancêde Nougué.

— Aqui no Brasil o estudante de filosofia pula a Idade Média e vai direto para Kant, etc. — diz Silveira. — Mas tomei a tarefa de publicar esses autores como uma missão, no sentido religioso mesmo. E que Deus nos ajude.

A lição é: na hora de estudar filosofia, é melhor ir direto à fonte. O ideal seria que fosse sem intermediários. O problema (absolutamente filosófico) é que o ideal não existe. Daí a necessidade dos “tradutores”.

Mas será que, na boa intenção de tornar a filosofia mais palatável, não se corre o risco de transformá-la em arroz de festa? Basta lembrar que foi uma certa popularidade além da conta que quase banalizou definitivamente as áreas “psi”... Nada mais chato, a gente sabe, do que psicanalisandos que gostam de vestir a fantasia de psicanalista. Com tantos livros, programas e grupos de estudo de filosofia, não teremos em breve os filósofos de improviso?

— Na psicanálise, aqueles que apresentavam uma fala vazia, enganadora, eram facilmente identificáveis — diz o professor e escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza. — Mas há um outro lado: você sempre encontra aquela pessoa com um sentimento religioso à espera de salvação, seja lá de onde ela vier. Eis a questão: quem procura quem?

No caso do filão de divulgação filosófica, Garcia-Roza diz que existe sim o risco de o assunto ficar banalizado por causa de uma demanda do mercado:

— Temos que ter cuidado com trabalhos que são de vulgarização ou, pelo menos, de divulgação muito geral, o que acaba barateando o tema.

Ele lembra que cabe ao ouvinte diferenciar o discurso puramente persuasivo, que se esgota na retórica vazia, daquele que é pertinente.

Por isso seria importante, para o leitor, o exercício de duvidar do que é apresentado nas prateleiras. Segundo o professor da Uerj Gustavo Bernardo Krause, doutor em literatura comparada — e para quem duvidar é sempre uma boa atitude — existe um aumento de interesse pela filosofia, talvez por falta de respostas a questões políticas e sociais importantes do mundo de hoje. É em momentos assim, diz ele, que o público começa a se voltar para o que os grandes pensadores andaram dizendo.

O professor da Uerj também considera um problema o exagero da divulgação filosófica. Mas faz uma ressalva:

— Existe sim um risco de banalização. Por outro lado, você tem que estar preparado para isso e lembrar que a filosofia não nasceu na universidade. Ela nasceu nas ruas, e algumas de suas tendências buscam hoje o discurso cotidiano.

Segundo Krause, um grande problema da onda atual são as obras que ficam tentando consolar o leitor, ou seja, usam o conhecimento filosófico para fornecer receitas de bolo existenciais. Por sinal, “As consolações da filosofia” é o título de um dos livros do anglo-suíço Alain de Botton.

— Botton é um banalizador. É inteligente, tem informação, mas é um banalizador. Ele tenta consolar, só que não existe consolo — diz o professor.

Entre popularizar e banalizar há uma diferença. Viviane Mosé reconhece que a visibilidade proporcionada pelo programa na Globo é uma questão delicada. Para ela, confundir filosofia com auto-ajuda é um erro.

— O importante para evitar essa confusão é perceber algumas diferenças: a auto-ajuda fornece fórmulas, aponta numa direção. Pode sugerir, por exemplo, que você dê uma gargalhada ao acordar, para ter um dia mais feliz. Já a filosofia apresenta questões, dúvidas. Ela aumenta a dificuldade e provoca questionamentos — diz ela.

E o risco da banalização?

— A gente até pode correr o risco de cair nessa fórmula de dar saídas, mas é o nosso medo. Nossa idéia é mostrar que existem outras maneiras de pensar e, principalmente, fazer as pessoas pensarem a respeito de coisas em que nunca haviam pensado — explica. — Claro que existe o risco de banalizar algo, mas essa perda sem dúvida é menor que o benefício, que é fazer com que cada um exercite sua própria interpretação a respeito dos fatos.

Viviane lançou recentemente “Nietzsche e a grande política da linguagem” (Civilização Brasileira). Para que seu trabalho na TV e no mundo acadêmico não sejam confundidos, ela faz questão de lembrar que o livro não é obra para iniciantes. Esse público, diz, será contemplado com uma série que está preparando para a Record, a sair em 2006. (N.V.)

Eles devem muito à onda ‘filô’.

Não é totalmente correto dizer que a filosofia não serve para resolver problemas. No caso de alguns autores, tratar a filosofia com visão editorial foi importantíssimo.

A onda 'filô' começou a marcar presença na praia da literatura com “O mundo de Sofia”, do norueguês Jostein Gaarder, e suas 800 mil cópias vendidas só no Brasil, desde 1995. Ex-professor de filosofia, calcula-se que ele já tenha vendido mais de 20 milhões de cópias somente com “Sofia”, em todo o mundo.

O recurso de criar histórias aproveitando personagens da filosofia continua firme e forte com o americano Irvin D. Yalom (“Quando Nietzsche chorou” e “A cura de Schopenhauer”, vendendo horrores). Yalom caiu no gosto popular: está na lista dos mais vendidos há meses.

Gaarder emplacou outras crias e não tem do que reclamar da vida. Yalom também não.

Fora da ficção, “Pequeno tratado das grandes virtudes” (André Comte-Sponville) também faz bonito desde 1995. Assim como outras obras de introdução a questões filosóficas, ganhou versões para crianças e é um dos best-sellers da Martins Fontes.

E como ler os pensadores diretamente, “ali no original”, não é para qualquer um — até porque muitos deles são mesmo chatíssimos — agüente-se a enxurrada de títulos apresentando a filosofia, ou história do pensamento humano, ou curiosidades sobre a vida dos filósofos etc.

É daí que nasce a linha do chamado aconselhamento filosófico, mostrando que a velha arte pode ser muito útil no seu dia-a-dia. Um exemplo prático desse filão está em “Mais Platão, menos Prozac”, do americano Lou Marinoff, que já vendeu 20 mil exemplares no Brasil. Não é literatura, não é filosofia. É auto-ajuda, e daquelas bem recebidas pelo público. Tanto que, em abril passado, a Record lançou outro título de Marinoff, “Pergunte a Platão”, que já vendeu dez mil cópias. Taí: Marinoff é mais um que deve muito à filosofia.

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