Teoria
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"Eu compro essa mulher" - Excerto do livro de mesmo título

 (2006, segundo semestre)


Cristiane Costa


Romantismo

"O ingrediente romântico na cultura tem sido responsável por uma parcela crucial do desenvolvimento da sociedade de consumo", assinala Colin Campbell (1). Para ele, uma "ética romântica" foi tão importante para promover o "espírito do consumismo" quanto uma "ética puritana" foi necessária para desenvolver o espírito do capitalismo.

"Em teoria, indíviduos não podem se prender a duas éticas distintas; na prática, isso não parece ser tão difícil", afirma (2). Campbell chega a falar na existência de uma personalidade "puritano-romântica", expert na manipulação do desejo. No "comportamento realmente romântico, há uma tendência para gerar oportunidades para criar desejo, não meramente satisfazê-lo", analisa. "De fato, tanto o prolongamento da demora de gratificação quanto a supressão da emoção trabalham juntas para criar uma rica, poderosa e imaginativa vida interior, o pré-requisito necessário para uma personalidade romântica" (3).

O folhetim e a telenovela, prendendo o público em seus ganchos e próximos capítulos, prometendo um final feliz depois de separar os amantes por uma sucessão de acontecimentos infelizes, conseguem atingir a estrutura psicológica desta personalidade romântica, que não visa a satisfação, mas a repetição do prazer. Daí, talvez, seu poder de atração.

Quando se analisa o obstáculo como uma das bases do amor romântico, chega-se a uma conclusão parecida: a hiperinflação romântica é uma das bases da sociedade de consumo. Para Denis Rougemont, o sexo é uma fome. Mas a paixão que nega tudo o que a possa satisfazer não é uma fome, "mas uma intoxicação" (4). O amor romântico (e, deve-se acrescentar, a ascese provocada pelo obstáculo, tanto faz se na literatura da Idade Média, nos folhetins ou nas telenovelas) não teria como objetivo a liberação dos sentidos, "mas a dolorosa intensificação do sentimento", através de metáforas de sentido religioso. Assim como Tristão e Isolda, seríamos todos vítimas de uma ilusão verbal: a exaltação, em termos divinos, do desejo sexual. "A ciência proclama que a mística resulta de uma sublimação do instinto. Mas pode-se mudar o sentido desta relação, e descrever que o instinto em questão resulta da profanação de uma mística primitiva", acredita Rougemont (5).

Campbell situa entre os séculos 18 e 19 - com a democratização da leitura, a produção em massa de romances e folhetins e o aburguesamento da vida familiar permitindo o tempo livre e a introversão necessários para a leitura silenciosa - o início de uma verdadeira autonomia imaginativa. Pode-se dizer, no entanto, que este processo vem se produzindo desde o século 12, com o aparecimento das narrativas corteses e a construção do mito do amor romântico, quando se inaugura uma forma extremamente sofisticada de manipulação e controle de sentimentos.

No século 19, a educação dos sentidos, de que fala Peter Gay em relação aos vitorianos, dá lugar ao desenvolvimento de um complexo mecanismo psíquico para controlar as reações emocionais. “Ao aproximar-se a era da rainha Vitória, sobretudo nas classes médias, a capacidade de auto-controle e sublimação já estava altamente desenvolvida”, afirma Gay (6). O amor romântico permite descobertas de formas mais sofisticadas de prazer do que o sexo. O prazer não será mais dado pelos sentidos, estimulados por objetos, mas pelas emoções, estimuladas pela imaginação.

Uma vez que o ser humano aprende a reprimir seus instintos, cortando o link natural entre sentimento e ato, será preciso artificialmente despertar e simular emoções. Máquinas imaginativas, como a televisão, o rádio e o cinema, serão fontes inesgotáveis de experiências emocionais, baseadas em estímulos prazerosos: paixão intensa, terror intenso, capazes de provocar inclusive reações fisiológicas. O oposto do prazer, para Campbell, não é o desprazer, mas a falta de estimulação, o tédio.

O day dream, o sonhar acordado, será fruto de uma situação de estimulação insuficiente, mas também o próprio acordar para essa realidade tediosa, na medida em que a pinta em tons cinzentos ao compará-la com uma versão mais perfeita, puramente imaginária. Para Campbell, esse processo mental cria um permanente estado de espera por algo melhor. A ilusão, como mostra Madame Bovary, logo se tornará um vício, uma droga consumida compulsivamente. Como para qualquer telespectadora contemporânea, nenhum romance será igual ao das novelas, nenhum homem tão belo quanto o galã, nenhuma vida tão cor-de-rosa.

A sociedade de consumo não só vai compreender, como reelaborar esse estado de crescente desilusão oferecendo um consolo: o da novidade. No novo, diariamente reapresentado, o homem, e principalmente a mulher moderna, projetará o seu desejo. O novo será enovelado, virará uma novela. Como, com a modernidade, a novidade ganha um valor social de status, de diferenciação, de estar à frente do seu tempo, a repetição seriada apresentará um novo que não é novo. Quanto mais demanda pelo novo, mais tédio: o jornal, a moda, as telenovelas reciclam um repertório diário de velhas novidades.

Consumismo

O consumo de que fala Campbell não visa um objeto particular, mas o que se pode fazer com ele. Consome-se passionalmente, não passivamente. Repetição, manipulação, ilusão, emoção: em que sentido pode-se falar de uma dimensão erótica do consumo, manifesta nessa auto-estimulação? A hiperinflação romântica tende a fazer com que o prazer não venha mais da manipulação sensorial, mas da estimulação direta das emoções. Essa sublimação permitirá o benefício secundário (da repressão) do gozo. E o consumo logo se oferecerá como uma dessas formas de sublimação e prazer, transformando desejos em objetos.

A teoria do consumo de Canclini, embora não parta para psicologizações, também afirma ser necessário ver os processos de consumo como algo mais complexo do que a relação entre manipulação e dóceis audiências ou a disputa pela apropriação de meios de distinção simbólica. Mas, em sua proposta de exercício de cidadania através do consumo, não estaria sendo vítima do espírito de conciliação de que fala Muniz Sodré em A comunicação do grotesco? (7) Ou, mais tarde, quando o teórico brasileiro diz:

“As clássicas práticas do sujeito (expressão, emancipação, cidadania) são contraditas por ‘práticas de objeto’ ou de ‘massa’ que, reguladas pelo código da sociedade neoliberal de mercado, acenam com a resignação confortável do consumo. A histórica realização social do homem pela atividade política é trocada pela liberação adulatória e auto-erótica dos desejos” (8).

Paradoxalmente, o caso das mulheres é exemplar tanto da tese do consumo como produtor de cidadania quanto da do consumo como prêmio de consolação para aqueles a quem a atividade política é interditada. A descoberta da mulher como mercado, e sua emancipação como público consumidor, foi muito anterior à autorização do sufrágio feminino. A França, onde a promessa de direitos cívicos foi feita mais cedo graçãs à Revolução, foi um dos países que mais demoraram a estender esses direitos para as mulheres. Enquanto o primeiro “sufrágio universal” data de 1848, a cidadania política feminina na França só seria viabilizada quase 100 anos depois, em 1944, quando praticamente todos os outros países europeus já tinham autorizado as mulheres a votar.

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em direitos e dignidade”, já previa a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Mas nem todos poderiam tomar parte da vida pública, vedada às mulheres, às crianças, aos estrangeiros e aos que em nada contribuem para o sustento das instituições públicas. “A exclusão das mulheres é particularmente severa, pois, ligada ao sexo, ela não poderia ser modificada, como a idade, a nacionalidade ou o nível de riqueza”, comenta Michelle Perrot (9).

O consumo é um sintoma cultural bastante revelador dessa moral dúbia em relação ao sexo feminino. Se é possível assinalar uma coincidência de datas entre o nascimento do folhetim e os primeiros ecos da Revolução Industrial, é viável fazer o mesmo com relação ao surgimento das telenovelas e à revolução tecnológica. Segundo Campbell, teria cabido ao sexo feminino a transmissão dos valores românticos de uma geração para outra durante os últimos 200 anos (e quem seriam até hoje os principais consumidores das histórias açucaradas senão as mulheres?). Ao sexo masculino, caberia a ética protestante do trabalho e acumulação do capital.

Para a sociedade de consumo, o núcleo familiar é fundamental para dar continuidade a essa cultura híbrida, dividida entre o feijão e o sonho. Nas novelas, em que até hoje a ascensão da heroína pobre se dá pelo casamento, esta dualidade entre o romance, que pertence ao universo feminino, e o trabalho, masculino, é mais do que explicitada.

Mas, cada vez mais dona de seu dinheiro, ou no mínimo responsável pelo “matriarcado orçamentário” do lar, na definição de Perrot, a mulher será o grande alvo da publicidade. Para isso, o sexo feminino precisará ser constantemente seduzido. A publicidade evoluirá de simples anúncios de produtos e promoções para uma arte persuasiva, a verdadeira arte da sociedade de consumo, tornando-se hoje a principal fonte de financiamento e recursos para os sistemas de comunicação. A publicidade realizará a mágica de transformação de desejos em objetos, e de objetos em desejos, dentro desse sistema de induções e satisfações, de acordo com Muniz Sodré:

“Os apetites públicos são simultaneamente criados e atendidos pelo complexo industrial, tornando-se vital para isso o contágio da consciência consumidora pela força (publicitária) de um ‘desejo’ que se confunde às vezes com o próprio produto. Assim, a publicidade não se limita em discorrer sobre a utilidade ou a funcionalidade de um determinado eletrodoméstico. Ela tem que afetar a consciência do cliente virtual com a idéia de que há no produto algo além de seu mero valor de uso, algo imaginário, mas complementar, da ordem da realização do desejo... Esta relação movida a desejos e fantasias domesticados e que se poderia chamar de ‘sígnica’ ou ‘comunicacional’ é necessária à lógica da comercialização contemporânea” (10).

Notas

(1) Colin Campbell. The romantic ethic and the spirit of the modern consumerism, p. 2.
(2) Ibid., p. 220.
(3) Ibid., p. 220.
(4) Ibid , p. 156.
(5) Denis Rougemont. L'Amour et l"Occident, p. 167.
(6) Peter Gay. A educação dos sentidos, p. 328.
(7) Muniz Sodré. A comunicação do grotesco, p. 31.
(8) Muniz Sodré. Reinventando a cultura, p. 53.
(9) Michelle Perrot. Mulheres públicas, p. 120.
(10) Muniz Sodré. Reinventando a cultura, p. 118.

Bibliografia

CAMPBELL, Colin. The romantic ethic and the spirit of the modern consumerism. Londres, Blackwell, 1989.
GAY, Peter. A educação dos sentidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
PERROT, Michelle. Mulheres públicas São Paulo, Unesp, 1998.
ROUGEMONT, Denis. L'Amour et l"Occident. Paris, Autrement, 1972.
SODRÉ, Muniz. A comunicação do grotesco. Petrópolis, Vozes, 1983.
___________. Reinventando a cultura. Petrópolis, Vozes, 1986.



Cristiane Costa
Jornalista, editora da revista Nossa História e do website Literal. Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ, é coordenadora do eixo "Comunicação é Cultura" no curso "Gestão e Marketing na Cultura", aperfeiçoamento em 180 horas, do CEPUERJ.

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