Teoria
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Um Comunicador/Educador Sob Medida: o profissional da cultura

 (1999, segundo semestre)


Nelly de Camargo


A América Latina tem uma longa experiência em atividades de educação e ação cultural ligadas aos processos de desenvolvimento. As necessidades de integração de enormes levas de populações migrantes de áreas rurais, pobres, e quase sempre despreparadas para áreas urbanas foram, desde sempre, um dos mais importantes desafios enfrentados pelas instituições encarregadas dos processos administrativos, políticos, religiosos e educacionais da vida social.

Apenas para citar um exemplo, nos anos 1940, um sério movimento denominado “movimento de educação de base” através dos rádios-forum teve lugar no Brasil, atingindo todo o país via recepção cativa de rádio. O programa tratava de assuntos variados e importantes, ligados principalmente à formação da consciência social. Mais tarde, uma abordagem sistemática para a erradicação do analfabetismo adulto, baseado na “Pedagogia do Oprimido” de Paulo Freire obteve muito êxito e tem sido, desde então, usada extensivamente não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina, em programas alternativos de desenvolvimento cultural.

Este e outros tantos exemplos demonstraram a necessidade da ação cultural e, conseqüentemente, a necessidade de profissionais especialmente preparados para desempenhar uma série de tarefas diversificadas, geralmente classificadas como ação cultural ou animação cultural, ou, ainda, como se designa em alguns países latino-americanos, promoção cultural.

Tais tarefas vêm sendo executadas há muito tempo. E de onde vieram essas pessoas que, inicialmente, começaram a desempenhá-las? A pesquisa mostra uma grande variedade de origens acadêmicas (1): são médicos, bibliotecários, professores, assistentes sociais, enfermeiras, e ainda, donas de casa com tempo livre, artesãos, artistas e muitos outros.

Afinal, o que essa gente tem em comum? Certamente não o seu currículo escolar básico, mas sim uma motivação interior, um desejo de melhorar o estilo de vida daquelas populações através da difusão do conhecimento, da ação solidária e do companheirismo, com vistas a alcançar um mundo melhor, através da organização dos grupos para o desenvolvimento e manutenção de suas conquistas, inclusive culturais.

Fica evidente que tal tipo de ação é impulsionada por apelos ideológicos e carismáticos. O elemento fundamental - a pedra de toque - é a motivação. Após quarenta anos de acompanhamento de vários programas de ação cultural na América Latina, ainda encontramos este elemento como sendo responsável pelos projetos que tiveram êxito, pela criatividade e alternativas nos processos de tomada de decisões que tal compromisso parece estimular.

Certamente não se poderia recomendar o desenvolvimento de um currículo para a formação de profissionais para a ação cultural unicamente na base da motivação interior, porém, sem tal elemento, qualquer currículo poderia facilmente produzir novos burocratas da cultura, melhor capacitados para bloquear o desenvolvimento cultural do que para partilhar seus frutos com a população.

A experiência latino-americana não registra, ainda, programas de envergadura nacional, de grande amplitude e longa duração. Ao contrário, os programas de ação cultural têm sido pontuais, diversificados, raramente bem planificados e coordenados, em termos de continuidade administrativa, avaliação e integração dentro do quadro das políticas culturais da América Latina.

Alguns fatores podem desde logo, ser apontados como responsáveis por esse fato: a complexidade e a dispersão das unidades que compõem o setor cultural e seu grau de especialização; a tradicional ligação administrativa existente entre os programas culturais e outros setores, principalmente os da saúde e educação; a falta de experiência administrativa das pessoas encarregadas de executar os programas; a desarticulação da ação cultural e social a nível estatal, que exige um sistema de coordenação intra e extra-setorial, em diferentes níveis, com vistas à racionalização de esforços e economia de recursos.

Este estudo pretende apresentar, de forma sumária, os resultados de uma série de entrevistas, artigos, relatórios de seminários latino-americanos e de um levantamento feito pela autora entre profissionais da animação cultural, ou ação cultural, como alguns preferem.

Considerações relevantes

Antes, e acima de quaisquer outras considerações, é importante enfatizar que a escolha e a adoção de uma estratégia para a ação cultural dependerá sempre de fatores políticos, administrativos, financeiros e técnicos, aos quais se acopla a cuidadosa escolha e formação das pessoas que se encarregarão das tarefas de animação cultural.

Isto posto, surge como primordial a necessidade de criar entre os dirigentes da política cultural a consciência da importância da revisão, adaptação e flexibilização das estruturas administrativas de modo a permitir o desenvolvimento de projetos culturais.

Tal processo de avaliação e revisão analítica, realizado periodicamente, permitirá:

a) considerar novos e antigos processos de gerenciamento, tendo em vista a ampliação dos poderes locais, municipais ou estaduais e regionais no processo decisório, sem perder o equilíbrio necessário à coordenação nacional das políticas culturais;

b) estabelecer redes institucionais de serviços culturais, conduzidas por centros comunitários locais, como medida de fomento cultural para o desenvolvimento de recursos humanos e institucionais;

c) criar condições para a formação de pessoal, em diferentes níveis e especialidades, destinado ao trabalho de animação e/ou promoção cultural.

Que perfil recortar para o profissional de animação cultural?

O objetivo da animação cultural é prover a comunidade com o máximo de possibilidades de acesso à informação, de formas espontâneas e/ou organizadas de expressão, de melhoria de estilo de vida, através do desenvolvimento pessoal que se reflete, necessariamente, na sociedade como um todo.

De acordo com os dados obtidos, o Agente Cultural (ou Animador, ou Promotor Cultural) é um profissional que:

• tem a responsabilidade de, como agente da mudança cultural e da mobilização comunitária, atuar como elemento de facilitação para a participação ativa da população em atividades culturais;

• interage e colabora na recuperação e difusão dos valores locais e na promoção da capacidade do povo no uso de seus próprios recursos; de outro lado, coopera na transferência da informação externa e ofertas culturais públicas ou privadas;

• coopera na criação e fortalecimento das ações culturais espontâneas das comundades, através dos processos de auto gestão, tendo em vista não apenas a expressão artística, mas também o conhecimento histórico-cultural e científico; da mesma forma como expõe, aos usuários, toda a gama de possibilidades a nível nacional, regional e internacional. Para tanto, é relevante que o Agente ou Animador Cultural tenha um claro e preciso conhecimento da legislação nacional e dos regulamentos específicos relativos aos objetos culturais e seus processos de circulação.

Estas considerações encaminham à questão: quem deve ser selecionado para exercer tais funções ou atividades. Aqui usarei quatro tipos de informação: o projeto de minha autoria aprovado pelo Conselho do Departamento de Comunicação e Artes da ECA/USP em 1974 (2); os documentos do Encontro Latino-americano de Peritos em Comunicação, Educação e Animação Cultural (Lima, 1988); os resultados de uma pesquisa conduzida por mim, através da Associação Paulista de Agentes Culturais (São Paulo, 1988) e os resultados dos Seminários realizados pela Mediacult (Viena 1986 e 1989).

Em primeiro lugar, sempre que se fala sobre “um currículo” para formar e preparar tecnicamente este tipo de profissional, uma reação bastante comum dos que já trabalham na área é: “agentes culturais já nascem feitos”; “por favor, não fale sobre escolas para formar mais profissionais desajustados”; “não nos chame de agentes culturais profissionais: somos profissionais que se tornaram agentes culturais” etc.

Qualidades pessoais

Após um prolongado debate entre os animadores, algumas características comuns emergiram como necessárias ao sucesso do trabalhador dessa área: a pessoa a ser encarregada das tarefas de animação cultural deve ter, entre outras qualidades, vocação para servir; elevado sentido de responsabilidade; predisposição para o trabalho comunitário, capacidade de desenvolver relações humanas, sentido de oportunidade, equilíbrio psicológico e formação técnica suficiente. Portanto, um possível currículo deveria ser desenvolvido contando com essas qualidades e buscando ampliar as capacidades operacionais do Agente ou Animador Cultural.

Formação: conhecimentos

Algumas áreas foram fortemente sugeridas como pertinentes à formação do Agente ou Animador Cultural: Políticas Culturais, Teoria e Pesquisa da Comunicação, Técnicas Audiovisuais, Elementos de Planejamento e Administração, Técnicas de Dinâmica de Grupo, Técnicas de Pesquisa Social e Desenvolvimento Comunitário.

Ênfase especial foi colocada na noção de que a formação dos Agentes ou Animadores Culturais deve provê-los com um instrumental que lhes permita integrar-se nas comunidades (nos diferentes níveis de participação) permitindo-lhes elaborar um “perfil cultural realístico” das situações encontradas; elaborar propostas ou projetos alternativos, levando em conta os valores e quadros de referência sócio-culturais existentes, bem como sua capacidade real ou potencial de criação, os meios e canais culturais de expressão ou inibição de expressão, suas organizações básicas, suas lideranças efetivas, e seus modos de utilizar os espaços e despender o tempo livre.

Da acuidade do diagnóstico dos fatores e variáveis acima mencionadas (e de outros que sejam correlatos) dependerá a definição de objetivos válidos, de estratégias de articulação entre forças em campo, e o desenvolvimento de planos e técnicas efetivos para promover a integração real da população nas atividades culturais.

Outro ponto enfatizado diz respeito à necessidade de um treinamento de campo, real e sob supervisão, como parte da formação do Agente ou Animador Cultural: os candidatos devem ser selecionados entre os participantes dos cursos, na medida em que se revelem aptos a participar de um plano piloto, colocando em prática uma atividade sistemática de desenvolvimento cultural.

Os candidatos devem ser testados em diferentes alternativas de ação, avaliados cuidadosamente em seu desempenho e resultados obtidos, de modo a que correções, ampliações ou especializações possam ser introduzidas (sob medida) em seu programa de treinamento, formação ou reciclagem.

Tal procedimento deve ter lugar em cada grau ou nível de atuação. Nenhum Agente ou Animador Cultural deveria ascender a um nível mais alto de responsabilidade sem ter cumprido, com sucesso, as tarefas do nível imediatamente inferior. Neste campo de atividade não se pode separar a reflexão crítica, o gerenciamento e o desempenho concreto.

Formação: Comunicação

Nunca será suficientemente enfatizado o papel da comunicação na dinâmica sócio-política das sociedades Latino-americanas, historicamente marcadas pela dependência cultural, econômica e tecnológica - frutos amargos das políticas colonialistas exercidas por séculos sobre os países em desenvolvimento -, e pelas profundas desigualdades internas nas áreas econômicas, políticas e culturais. Porém, afortunadamente, marcadas também pelas confrontações, pelas buscas de caminhos para a transformação do ambiente social, através da superação das injustiças mais flagrantes e pelo crescimento da participação das grandes maiorias no empreendimento social.

Dentro deste cenário, existem numerosos projetos para o desenvolvimento cultural em todas as áreas, em vários níveis, requerendo a organização dos setores populares, tanto quanto dos setores diferen-ciados das muitas sociedades que coexistem no continente.

Face à grande diversidade de formação das populações latino-americanas em termos de etnias, linguagens, valores, religiões, música, dança, e outras formas de expressão e concepção ideológica sobre a vida - tanto individual como social - a Comunicação não pode ser considerada apenas um conjunto de canais difundindo mensagens. A Comunicação é uma área estratégica em que são construídos os meios e os significados: um sistema de interação que engendra os processos de identificação das características, normas e valores de um povo ligado ao reconhecimento e articulação de interesses, e à legitimação de conhecimentos e poderes, que produzem a emergência de uma ordem social.

Cabe à Comunicação a função de promover e priorizar os debates sobre problemas de modo a habilitar a sociedade como um todo a confrontar-se com o seu conjunto de valores, demarcar os territórios dos direitos e das responsabilidades e pronunciar-se sobre os conteúdos veiculados pelas redes de comunicação que modelam e guiam o comporta-mento social.

Nas sociedades em desenvolvimento, a voz das pessoas comuns raramente atinge os canais de comunicação, e as tradicionais desigualdades no direito de participação no diálogo social geralmente contribuem para que os grupos desfavorecidos sejam mantidos à distância, como se fossem constituídos por cidadãos de segunda ou terceira classe.

Entretanto, as necessidades sociais se manifestam através de várias formas de resistência e luta para modificar a ordem social comunicativa excludente, exibindo uma dinâmica peculiar de confrontação para cada situação. Geralmente, necessidades e propostas são expressas de modo tradicional, incorporando todos os meios e recursos disponíveis para atingir suas finalidades: folhetos, tablóides, jornais murais, alto-falantes, representações teatrais tipo sócio-dramas, música folclórica e bonecos, uso de veículos mais sofisticados como o rádio, os diapositivos e outros meios audiovisuais, incluindo o cinema, o vídeo e a TV. Para os estratos populares, “o acesso a estes meios representa não apenas o exercício de um direito, mas um instrumento essencial de mobilização e ação.”

A despeito das diferenças entre os exemplos (rural e urbano, por exemplo), que possam ser alinhadas, algumas constantes permanecem: o esforço destes grupos na busca da informação adequada, que normalmente é negada ou pouco explicitada; a necessidade de compreensão e explicação das situações nas quais experimentam a força dos grupos dominantes; a necessidade de seu auto-reconhecimento como atores sociais, identificação que ocorre ao nível dos valores; a necessidade de centrar-se enquanto grupo, em termos de objetivos e interesses; a necessidade de serem reco-nhecidos pela sociedade como um todo e a oportunidade de expressar seus ideais e projetos; a necessidade de participação efetiva pelo uso de suas habilidades na ação conjunta e solidária, suas habilidades para compartilhar idéias e poder, e assim por diante.

Formação: um processo histórico

O desenvolvimento das práticas comunicativas são parte da história cultural do continente. No Brasil, do ponto de vista dos meios de comunicação de massa, iniciou-se antes dos anos quarenta(3), mas é a partir dos anos sessenta e setenta que estas práticas se tornaram o alicerce principal da atuação de um grande número de organizações envolvidas com o desenvolvimento cultural e os processos organizacionais e educacionais básicos.

Tendo em mente o quadro de referência acima delineado e as peculiaridades de cada situação, a “formação” dos primeiros agentes sócio-culturais ocorreu, não a partir de um currículo especial, mas “devido à troca solidária de experiências, de êxito e derrotas, de avaliações empíricas e críticas sobre um conjunto de ações muito pouco sistematizadas, com o único propósito de criar novas alternativas para enriquecer a experiência dos agentes e oferecer uma base orientadora de novas experiências.”

Todos os processos bem sucedidos tiveram origem nas necessidades da prática, fosse essa prática a organização ou a atuação do próprio grupo, fosse ela a ação desempenhada através de grupos intermediários de educação popular. Atualmente, a sistematização do conhecimento trabalha sobre muitos assuntos: alguns, bastante precisos; outros, altamente inquisitivos, especulativos.

Formação: uma prática eficiente

A pesquisa realizada junto aos que estão trabalhando como agentes ou animadores culturais revela que, como grupo, eles sempre requerem a aprendizagem de Técnicas Operacionais: como produzir um jornal mais atraente a ser editado pelo grupo; como produzir um texto para sócio-drama ou rádio; como produzir melhor as mensagens; como capacitar-se para tratar com mais êxito diferentes grupos de pessoas ou personalidades; necessitam de conhecimento sobre como planejar, como avaliar etc.

A ênfase dos dados entre os que estão atualmente no campo se coloca, pois, no caráter instrumental do conhecimento e, em especial, do conhecimento em comunicação.

O conhecimento operacional, entretanto, não é suficiente, pois o Agente ou Animador cultural revela a necessidade de “compreender as razões subjacentes aos processos”: quais são as explicações alternativas, as alternativas de ação, as possibilidades de criar novos espaços para o desenvolvimento cultural e práticas comunicativas; as diferentes dimensões (individuais, grupais, institu-cionais e mas-sivas) de ação necessária e viável.

O mesmo raciocínio se aplica às organizações que também necessitam ter muito claro para sua atuação o papel dos meios de comunicação nas práticas educacionais e organizativas das classes populares, a vinculação entre comunicação e economia/ideologia/poder. Estas são necessidades de ordem crítica ou reflexiva, com fins estratégicos.

Um outro conjunto congrega aspectos conceituais políticos, imprescindíveis para promover a conscientização e a sensibilização que devem estar na base de qualquer processo decisório de ação cultural. Conseqüentemente, devem ser considerados como elementos constitutivos de currículo para a formação do Animador Cultural.

Um outro tipo de necessidades comparece com alto grau de importância e poderiam elas serem chamadas de necessidades pedagógicas: conceitos, atitudes, habilidades, métodos e técnicas cientifica-mente reconhecidas como relevantes para detonar o efeito multiplicador do processo básico de formação. Enfim, um conjunto que se poderia intitular Pedagogia Democrática de Ação Cultural.

Alinhadas sob o título Administração, aparecem como necessidades saberes como: planejar; organizar os objetivos da ação e dividí-los em fases, de modo a que o Agente ou Animador Cultural possa prever e prover recursos humanos, materiais, técnicos, etc.; como elaborar um processo de avaliação contínuo que possa acompanhar a ação ao longo do seu curso; como planejar, em diferentes níveis de ação, a criação, produção, disseminação e recuperação da informação; como otimizar os recursos existentes em termos de espaço-tempo-usuários-realimentação; como manter o intercurso entre instituições e organizações aos níveis local/regional/internacional; como elaborar e implementar planos a longo prazo e estabelecer conexões horizontais em uma sociedade com políticas descontínuas e estruturas verticais.

Não menos importante é a questão de como proceder à formação destes novos profissionais sem cair nas armadilhas dos “puritanismos” e “populismos”, que têm infectado muitos dos planos e programas sociais e culturais da América Latina, pela criação de abordagens ilusórias aos duros desafios do desenvolvimento, tais como “a comunidade está sempre certa”; “o popular é melhor”; “a quantidade vale mais do que a qualidade”; “teoria, ciência e lógica são inimigos do pensamento participativo”; “a tomada de decisões deve ser sempre consensual”; e assim por diante, como cita Demo. (1988)

A “Leitura de Realidade” enfatizada em todas as recomendações sobre o tema é, de fato, a questão mais importante na formação do Animador/Agente Cultural, pois o trabalho a que este se propõe se enraíza na formação, vida e futuro de outras pessoas. A partir de tal leitura - embora sempre incompleta -, decisões serão tomadas, planos serão elaborados, recursos e pessoas serão mobilizados, prioridades serão esta-belecidas e processos serão ativados na direção de objetivos escolhidos. Assim, o Animador Cultural necessita também ser criativo, pois “será uma pessoa de propostas.
Não a única, não a mais importante, mas uma pessoa capaz de construir e manter uma capacidade de formular propostas coerentes, pertinentes e respeitosas” (Mata, 1988).

Os peritos Latino-americanos em ação cultural sumariaram, como segue, quatro componentes básicos que devem estar presentes no processo de formação do Animador ou Agente Cultural:

1. Quadro de Referência Conceitual: o QUE/PORQUE da ação.

Conhecimento sobre o ambiente cultural dado: processos e manifestações, hábitos, valores etc., que possam ajudar a definir a real pertinência e os prospectos de uma proposta. É a área da transdisciplinaridade das Ciências humanas e sociais: a compreensão holística em profundidade, com atenção especial a suas variáveis e elementos. Diagnóstico.

2. Logística: COMO e ONDE as ações são desenvolvidas.

Conhecimento sobre comportamento organizacional, localização e otimização de recursos/tarefas em termos de adequação ao ambiente e aos objetivos da proposta (escalonamento, organização de grupos de trabalho, programas de difusão, eventos etc.).

3. Quadro Estrutural: o QUE e COM QUE da proposta.

Alocação de recursos humanos e materiais inclusive recursos financeiros para a proposta completa, pois um transparente equacionamento das necessidades é vital para o cumprimento dos objetivos. Isto parece óbvio mas, muitos dos insucessos relatados se deveram à não observância ou minimização das inadequações infraestruturais.

4. Estratégia: é o Raciocínio Sistêmico Comunicacional.

Adequação da ação a critérios tais como oportunidade, continuidade e pertinência com respeito a políticas institucionais (federais, regionais, estaduais, municipais) que incorporam as tarefas culturais ao conceito da prática de desenvolvimento integral. Leva em consideração, entre outras variáveis, a história e o ritmo de um dado grupo ou sociedade.

Decorre do exposto, que o trabalho do Animador ou Agente Cultural tem lugar em diferentes campos, e em diferentes níveis, que vão desde atividades gerenciais e administrativas às atividades de participação direta em eventos.

Qualquer que seja o caso, entretanto, o Animador ou Agente Cultural necessita estar capacitado para poder analisar a lógica dos fenômenos “reais” e operacionalizar, com segurança, seus conhecimentos sobre:

a) a organização comunitária-política, econômica e cultural;

b) os processos formativos dos indivíduos e das sociedades;

c) o planejamento de serviços e processos de desenvolvimento;

d) a sistematização de processos de trabalho; e, finalmente,

e) a avaliação (de todos os elementos e processos intervenientes em a, b, c e d).

Necessita sobretudo, uma filosofia a nível pessoal: A busca da Qualidade Interior e Auto-Desenvolvimento.

É essencial ao processo de formação do Animador Cultural, o compromisso com o seu próprio aperfeiçoamento, a ampliação dos seus campos de atividades e flexibilidade para os diferentes níveis de ação. Às ciências do comportamento, as ciências sociais, a filosofia e a ética provêm instrumentos para o crescimento da sensibilidade e da compreensão, em profundidade, dos fenômenos, bem como dos processos pessoais de reação aos mesmos.

Entre outras, algumas características não podem faltar ao perfil do Animador Cultural:

1. Capacidade de crítica e de autocrítica; honestidade, respeito, sensibilidade; receptividade, capacidade analítica; capacidade de diálogo; criatividade;

2. Tais qualidades, aliadas à uma correta interpretação da realidade, baseada na compreensão progressiva da lógica do cotidiano, permite ao Animador Cultural enfrentar e desempenhar inteligentemente as operações ligadas às suas funções profissionais: organizar, coordenar, negociar, gerir/administrar, planejar, desenvolver trabalhos de campo, implementar, avaliar, desenvolver processos de seguimento, etc.;

3. Capacidade de traduzir em “funções” desejáveis, ou seja, a habilidade de identificar necessidades, estimular a participação, programar, instrumentalizar ações, abrir alternativas para o uso, reflexão e entretenimento, diversificar serviços (ofertas), problematizar a realidade, obter reações para avaliação e correção;

4. “Desempenhos” como pesquisador, professor, comunicador, produtor de meios ou canais para produtos culturais, estimulador etc., ou combinações entre estas funções, são geralmente esperadas dos animadores culturais, que demonstram sua maior ou menor criatividade, na medida em que colocam em ação as necessidades e as condições de ação para o desenvolvimento dentro das possibilidades de um contexto dado.

Certamente, estes e outros aspectos são característicos de um profissional polivalente ideal, difícil de encontrar na realidade. Os processos de formação devem levar em conta os tipos, níveis e extensões da ação cultural. Conseqüentemente, haverá um núcleo curricular ou um conjunto básico de conhecimentos mas, para cada tipo, nível, escopo de ação, a formação deverá ser recortada e modelada cada vez que o Animador ou Agente Cultural deva assumir ou mudar de programa.

A concepção de treinamento ou formação modelada (tailored) é extremamente importante para a sociedade atual, caracterizada pelo processo de aceleração e diversificação. Um exercício interessante será construir uma matriz onde os tipos de tarefas requeridas figuram nas colunas e as áreas de conhecimento nas linhas, de modo que, nas convergências, se torne possível discriminar o tipo de treinamento modelado ou “sob-medida” para um determinado Animador ou grupo de Animadores Culturais.

Chanona (4) propôs que os agentes culturais poderiam usar a mesma matriz para a análise de suas próprias necessidades no trabalho de campo.

A matriz pode ser usada pelos Agentes Culturais para planejar projetos culturais nos campos:

1. capacitação, formação (cursos, oficinas, seminários, conferências, reuniões, trabalhos de campo etc.)

2. difusão cultural (eventos, representações, shows; concursos, exposições, publicações, produção de rádio e TV etc.)

3. Pesquisa (inventários, levantamentos; catálogos; pesquisa de campo e literatura; projetos etc.)

Áreas
Operativas
Áreas
Culturais Treinamento
Formação
Capacitação
Reciclagem Difusão
Cultural Pesquisa etc.

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História
Cultura
--------------------------------------------------------------------------------
Proteção da Informação
“Patrimônio”
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Ciência / Tecnologia
--------------------------------------------------------------------------------
Cultura Artística
--------------------------------------------------------------------------------
Meios de Comunicação e Cultura
--------------------------------------------------------------------------------
Pluralismo Cultural e
Cultura Popular
--------------------------------------------------------------------------------
Planejamento
Cultural e
Administração
--------------------------------------------------------------------------------
Criação Produção
Disseminação Recuperação
--------------------------------------------------------------------------------
Criação Literária
Drama etc.
--------------------------------------------------------------------------------
Etc.


A fim de usar a matriz, o Animador Cultural deverá usar quatro tipos indispensáveis de análise:

1. Diagnóstico: social/político/aspirações, necessidades e potencialidades culturais;

2. Planejamento: (incluindo contextualização): quadros de referência conceitual, realidade socio-econômica, realidade política e cultural;

3. Programação: Projeção de atividades específicas, orçamento, contexto institucional, legal e burocrático;

4. Avaliação-inicial, follow-up, final.

Cada casela da matriz provê orientações para propostas que, se pertinentes e adequadamente dosadas às necessidades e prioridades da comunicação ou instituição, poderão ser posteriormente implementadas em termos de planos, programas e mecanismos de execução e avaliação.

Formação democrática:uma Política de Desenvolvimento

Para a concepção Latino-americana de desenvolvimento autoconfiante é especialmente importante que o programa se encaminhe para os grandes objetivos do desenvolvimento cultural, como expressos em vários documentos nacionais e regionais sobre política cultural. Tais objetivos podem ser sumariados como segue:

1. Autogestão/autogerência (reconhecimento da adequação cultural): coordenação de esforços/racionalização de recursos; reci-clagem das condições infra-estru-tu-rais; rejeição de financiamento externo/proces-sos decisórios externos/adequação a critérios externos aos processos de desenvolvimento da comunidade, país ou região;

2. Democratização: participação e estimulação de grupos, equipes e indivíduos; suporte, estímulo às iniciativas locais autóctones; adaptação dos projetos de trabalho do Agente ou Animador Cultural ao conjunto das propostas locais; inserção dos grupos locais (ou indivíduos) na instrumentalização de programas;

3. Reforço da unidade cultural e valores do quadro de referência: pluralidade de fontes de informações e tendências; alternativas de expressão; identidade cultural, inserida no cenário regional e internacional.

A leitura da realidade e o planejamento dos programas constituem o núcleo das atividades culturais posteriores, as quais resultarão da discussão aberta das propostas.

De acordo com a rica experiência mexicana em ação cultural, o melhor agente cultural é apenas um “facilitador” nos processos de desenvolvimento cultural.

Em todos os países da América Latina, “casas da cultura” e espaços culturais existem em grande número. Mantidas pelos governos, pelas associações comerciais, entidades religiosas ou fundações independentes, estes centros culturais são normalmente utilizados pelas populações que consomem os programas oferecidos: cinema, teatro, shows, concertos, mostras e exibições, conferências, seminários e oficinas, cursos, reuniões. Em suma, todo tipo de eventos: alguns, preparados pela administração; outros, apenas utilizando a infraestrutura do centro. Muitas vezes, sem uma política explicitada e consentida.

Entrevistas realizadas com o pessoal trabalhando nesses centros mostraram que muitos dos parâmetros da ação cultural são determinados de acordo com a fonte dos recursos: ideologia, escopo, duração, orçamento, entre outros.

Outros aspectos são menos rígidos, permitindo ao Animador Cultural maior liberdade de criação e operação, desde que respeitadas as decisões tomadas nos aspectos anteriormente citados. A liberdade maior se encontra na escolha de técnicas pedagógicas, conteúdo informativo, organização dos programas, recursos audiovisuais etc.

Há casos em que os Agentes ou Animadores Culturais recebem treinamento e aprendem a produzir os implementos de seu próprio programa. Outras vezes, aos Agentes são atribuídas tarefas específicas dentro de um programa mais rigidamente coordenado. Variações entre os dois extremos podem ser compreendidas dentro da análise global dos objetivos e políticas da instituição patrocinadora.

O Papel da Universidade na Formação dos Animadores/Agentes Culturais

A ação cultural vem crescendo paralelamente à emergência de uma sociedade afluente, pós-industrial, que torna mais visíveis - e mais insuportáveis - as desigualdades entre os que TÊM e os que NÃO TÊM; entre os que SABEM e os - assim chamados - QUE NADA SABEM.

A consciência sobre o abismo estabelecido entre os grupos dentro de uma sociedade, e entre as sociedades dentro da comunidade internacional e suas conseqüências para o equilíbrio social, paz mundial e sobrevivência da humanidade, tem sido enfatizada pelos pensadores, educadores, governos e também pelas organizações internacionais (5) que vêm sucessivamente criando eventos especiais e grupos de estudo para clarificar o assunto, identificar os fatores mais importantes e propor políticas que possam minimizar tais desigualdades, ajudando a superar os problemas.

A ação cultural está alinhada com um desses esforços, e o Agente ou Animador Cultural é um desse novos profissionais: meio comunicador, meio educador, com uma “extra” e extremamente importante parcela de compromisso com uma missão: a de ajudar a criar ambientes e condições favoráveis para pessoas, grupos e sociedades, como um todo; compartilhar a riqueza da produção mundial no campo das ciências, da tecnologia e das artes do quadro de referência das tradições e História do grupo; a crescer em auto-respeito e respeito aos demais povos em matérias de idéias, expressões artísticas, estilos de vida, modos de resolução de problemas e demais variantes culturais.

É responsabilidade da Universidade de países em desenvolvimento preparar esta formação em cada pessoa que receber uma educação superior.

A pesquisa revela unanimidade sobre a questão de que o profissional da animação cultural não deve ser preparado a nível de graduação; a maturidade e a necessária inter e intradisciplinaridade que sua atuação vai requerer, obriga a presença de candidatos de distintas origens acadêmicas que receberão, a nível de pós-graduação, os conhecimentos e práticas complementares de que já se tratou anteriormente.

É importante ressaltar que esta foi a única questão que teve 100% de consenso entre os entrevistados e cuja importância foi particularmente enfatizada pelos responsáveis de grandes programas na cidade de São Paulo.

Algumas universidades latino-americanas já oferecem treinamento a Animadores Culturais: México, Venezuela, Colômbia, Peru estão entre as mais ativas. No Brasil, e em vários outros países, há esforços combinados entre as universidades e as instituições patrocinadoras na criação de programas sob medida, especialmente destinados aos Agentes ou Animadores Culturais. Na maioria das universidades, entretanto, geralmente se oferecem apenas cursos sobre o assunto, com mais ênfase na reflexão crítica sobre suas variáveis do que na formação de um profissional operacionalmente habilitado (6).





Notas
1. de Camargo, N. Who are the people’s teachers? São Paulo, 1984 (Quem ensina o povão?), Mimeo, IAMCR Conference, Praga, 1984.

2. O projeto, aprovado pelo Conselho e encaminhado à Diretoria da ECA propunha uma profissionalização diferenciada aos seus alunos em três linhas: o Pesquisador em Comunicação, o Consultor em Comunicação e o Especialista em Política de Comunicação para o Desenvolvimento.

3. Quando da instalação do rádio no país, Roquette Pinto acreditava que todos os nosso problemas educacionais estariam resolvidos.

4. Chanona Burguete, O. Apuntes para una metodologia de la Comunicación Cultural, contribuição ao Primeiro Encontro de Comunicadores, Educadores e Animadores Culturais, Lima, 1988.

5. UNESCO: The New International Information Order Committee.

6. O tratamento dado pelas Universidades ao assunto será objeto de um próximo ensaio.


Bibliografia
1. Augustin, Gérard. Cultural Development: Experiences and Policies. The UNESCO PRESS, Paris, 1972.
2. Camargo, Nelly de. Production and diffusion of cultural Goods and Services: the Formation of personnel. Mediacult, Wien, 1986.
3. ________________. O Ensino da Comuni-cação no Brasil. Revista Comunicações e Artes, São Paulo.
4. ________________. Políticas de Comunicação e Perplexidades do Desenvolvimento. In Amaral (coord.). Comunicação de Massa: o impasse brasileiro, Forense, Rio de Janeiro, 1982.
5. ________________. Quem ensina o povão? Mimeo, 1984. Who are the people’s tea-chers? IAMCR Conference, 1984.
6. ________________. O Perfil do Animador Cultural. Levantamento. São Paulo, 1988.
7. Camargo, Nelly de (Raporteur). Training of Personal Engaged in the Production and Dissemination of Cultural Goods and Ser-vices. Seminar Mediacult, UNESCO, Wien, 1989.
8. Cardoso, F.C. S. Paulo e seus Problemas Sociais. In Caderno 14 CEBRAP, SP, 1973.
9. Chanona, O. Burguete Apuntes para una metodologia de la Animación Cultural. Doc. 1º Encuentro Latinoamericano de Animación, Comunicación y Educación, Lima, 1988.
10. Conseil de L’Europe. Adaptation de l’éducátion des adultes aux besoins fonctionels et culturels. Strasbourg, 1973.
11. _______________. Perspectives de la coopération dans le domaine des systèmes multi-media. Strasbourg, 1973.
12. Demo, Pedro. Avaliação Qualitativa: Purismos e Populismos. IPLAN/IPEA, Brasília, 1987.
13. Gutierrez, F. Educación y Comunicación en el Proyecto Principal. UNESCO, Santiago, 1983.
14. Mata, M. La Formación de Comunicadores en el Marco de la Promoción Social y la Educación Popular. Doc. apresentado en el 1. Seminar. Regional de Animadores Culturales, Educadores y Comunicadores, La Paz, 1988.
15. UNESCO. The McBride Report on NIIO. Paris, 1981..



Nelly de Camargo
Doutora em Ciências da Comunicação e fundadora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Pós-Doutorada - FULLBRIGHT SENIOR RESEARCHER - Stanford University. Conselheira Regional de Comunicação da UNESCO para a América Latina. Ex-chefe do Departamento de Multimeios do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

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